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UM BANQUETE

UM BANQUETE
de Maria Braga

No Banquete, serve-se a fantasia dos comensais.
O salazar partiu-se.
Pude pousar a língua torta da carcaça.
Ouvidos moucos do vinagre,
poejo.
O maçarico queima a banha que cobre a dinamite.
Flor dobrada, ouro aos folhos, melosos.
— Maria, vai apanhar espinafres e laranjas ao jardim.
Chupou os dedos e soube-lhe bem o líquido do chocolate duro.

Performance criada a partir da história do Palácio do Sobralinho e dos seus habitantes.

© Inestética

Ficha Artística / Técnica

Performance de Maria Braga
Assistência Rodrigo Dâmaso
Confecção Maria Braga e João Correia
Fotografia Maria Braga
Vídeos Maria Braga
Imagem Vitor Carvalho e Maria Braga
Apoio técnico Fernando Tavares
Design gráfico Rita Leite
Apoio à produção Susana Serralha
Produção Inestética companhia teatral
Estrutura financiada por República Portuguesa – Cultura,
Direção-Geral das Artes e Câmara Municipal de Vila Franca de Xira 
Apoio Flor do Tejo Bar 
Agradecimentos Balaclava Noir, Maria Isaura Braga, Matias Braga

Sessões

Vila Franca de Xira
Palácio do Sobralinho, 16 e 17 Jul 2021

50 min | M/16

Exposição

Vila Franca de Xira
Flor do Tejo Bar, 3 a 12 Set 2021

Um Banquete
de Maria Braga

por Vanessa Badagliacca

Ao receber um convite para um banquete não será pretensioso esperar que a comida seja refinada e em abundância, preparada com ingredientes de qualidade e bem-apresentada, provavelmente num lugar que aparente luxo e riqueza. Desde as tumbas do antigo Egipto, passando pelos banquetes da antiguidade grega e latina e chegando ao aparato e fausto da nobreza europeia em todas as suas formas nos séculos XVII e XVIII – tempos em que o Palácio do Sobralinho foi edificado e viveu o seu auge –, a história da cultura ocidental está repleta de referências associadas ao banquete que retratam como o poder se exibe à mesa, campo de selecção e de eleição, onde existe uma clara separação entre quem se senta e é servido e fala, e quem, sempre de pé, serve e cala. 

Para a preparação de um prato são necessários ingredientes que – com proveniência de vários lugares, desde terras longínquas de outros continentes até ao jardim do próprio Palácio – têm na cozinha um lugar de encontro, e onde, para se tornarem comestíveis, se prestam a ser transformados pela arte da culinária. Deste modo, a comida e os seus ingredientes associam-se também a uma ideia de higiene, de boa apresentação visual e de ordem e, quando mostrados fora da forma e do contexto que lhes é destinado (um processo de cozedura ou conservação, um prato para as conter ou um lugar associado a refeições), estes ingredientes não apenas sujam, como também provocam desordem, suscitando reacções entre o cómico, o irónico e o estranho.

Se num banquete o prazer dos olhos antecede o do palato, aqui Maria Braga convida-nos a Um Banquete onde imagens do tamanho de pratos, em vez de nos deleitar com iguarias, mostram alguns destes alimentos fora do sítio que por norma lhes é atribuído. Uma fonte barroca em forma de concha – símbolo de renascença e purificação – onde o peixe de mármore, em vez de deitar água pela boca, está a pôr a língua de chocolate de fora, provocando um desconforto sensorial, metáfora de uma memória incómoda e repelida sobre o passado colonial que se tece com a história da plantação do cacau.

Uma orelha de porco pregada à porta torna visível uma violência que pertence também ao registo sonoro, aludindo aos sons do Palácio ao longo da sua história. Ruídos, silêncios, bisbilhotices, palavras proferidas em voz alta, segredos guardados ou sussurrados, tons de vozes altos e baixos proporcionais às respectivas classes sociais que aí moravam e da sociedade portuguesa de forma geral. Um toucinho posto na escadaria converte-se num perigoso e gorduroso escorrega para o passante imprudente. Outra imagem mostra ainda uma laranja desfeita por um martelo para bater bifes e que, pelo tamanho, remete para o martelo de um juiz, como que aludindo a uma tentativa de fazer justiça com as ferramentas de quem cozinha, onde as protagonistas são as empregadas que chamam a História a julgamento e determinam uma sentença agridoce e esmagadora. 

A estrutura onde se entretecem os favos, fruto da perícia arquitectónica das abelhas produtoras de mel (ouro líquido que cura), leva apoiada por cima no canto direito uma aparente tela branca dobrada – dobrada de porco, parte do estômago do animal. Se o mel, por ser resultado de um misterioso processo de elaboração, simboliza uma espécie de iniciação e trabalho espiritual pessoal, a dobrada, que recebe a parte mais suja do nosso corpo enquanto estamos vivos, após um processo de tratamento e limpeza post-mortem atinge esta cor branca e imaculada, representando uma pureza desajustada com que Maria Braga mais uma vez nos convida a questionar com cada imagem tudo o que este banquete tem para nos oferecer. 

A época da construção do Palácio coincide também com o apogeu de um género pictórico que estava amplamente difuso pela Europa inteira, a natureza morta – representações de plantas, animais, e por vezes instrumentos musicais que, com riqueza de detalhes e beleza das formas, simbolizavam a caducidade da vida humana e a fugacidade do tempo e decoravam as paredes das habitações privadas das classes sociais mais elevadas. Nesta última imagem da série para Um Banquete, Maria Braga subverte o cânone retratando com a máquina fotográfica – numa perícia mimética que remete para uma pintura flamenga do século XVII – uma língua de vaca crua servida numa travessa prateada. Um equilíbrio compositivo entre o perfeito e o perturbador. Depois a língua é escaldada para que se lhe possa retirar a pele e, assim, aparece com esta cor acinzentada no vídeo Língua. Aqui, a artista, vestindo a farda de chef, bate com a língua na mesa. Uma tarefa da esfera privada da cozinha – suja e ruidosa – é encenada no sumptuoso salão do Palácio. Um duelo entre a teimosia da língua torta e o salazar – irresistível e irreverente alusão à avareza do ditador – que se parte. Finalmente, Maria Braga, com olhar simultaneamente curioso e céptico, enfrenta literalmente a língua morta e torta, observando-a com um misto de atração e repulsa, até mordê-la.   

Esta mesma língua, junto com a orelha, o toucinho, a tripa, o mel e o chocolate juntar-se-ão na cozinha para serem habilidosamente preparados e, por fim, chegar a Um Banquete, performance realizada nos dias 16 e 17 de julho. Será digno deste nome um banquete feito com os restos da comida dos ricos? É este o desafio que nos lança a artista, enquanto se dedica à minuciosa preparação de cada prato, com gestos repetidos e de uma sofisticação e modéstia ironicamente desadequadas desvendando cada alimento guardado ora num tupperware de plástico, ora em película transparente, e guarnecidos com molhos guardados naqueles recipientes que podemos encontrar numa tasca qualquer. 

Nesta acção demolidora e provocadora, o convite a comer torna os espectadores em convidados, não apenas a provar a comida – «podem servir-se, dois de cada vez» – mas a questionar para quem é esta comida que eles próprios estão a saborear, de onde vem e por quem foi feita. A crítica é dúplice: por um lado às desigualdades sociais na história e, por outro – com a sua farda preta à moda dos chefes que primam na alta cozinha e que na maioria são homens –, à atribuição de valor que é dada hoje em dia à comida, num tempo em que alimentos que deixaram de ser «coisa de pobre» entram nos cardápios luxuosos da restauração contemporânea com parca quantidade e elevado cuidado estético como forma de distinção social.

Há mais um elemento neste banquete: o pão branco, que costumava chegar apenas às mesas das pessoas mais ricas e que durante a época de Salazar se estende ilusoriamente às classes menos favorecidas – que só podiam comer pão escuro – com a introdução da carcaça. No vídeo Carcaça, sozinha à mesa na cozinha do palácio, Maria está a comer um pão. No tempo entre a primeira e a última dentada, a sua cara é um teatro de expressões que transmitem angústia, ressentimento, amargura e um desespero que não se rende, mas que pede explicações ao confrontar a câmara com olhar directo no fim. Curioso notar que o nome deste tipo de pão – tão cheio de ar e vazio por dentro – seja sinónimo de esqueleto. Um alimento que leva no nome a vida e a morte mostra como «o pão é ambíguo, como cada coisa que vale e significa. Contém um fermento, e sem este fermento não seria pão, mas o fermento é impureza cadavérica, é morte que vive». [Guido Ceronetti, Il silenzio del corpo, Milano: Adelphi, (1979) 2010, p. 17]

É nesta ambiguidade, neste território intermédio onde significados e leituras se desdobram, que Um Banquete de Maria Braga nos convida a pensar, entre ironia e convivialidade, mostrando a comida como motor de crítica social e política. E, assim, despede-se: «tive que fazer um banquete com a comida dos empregados. Mas é o que havia. Fiz o meu melhor. Obrigada por terem vindo».

Vanessa Badagliacca, Agosto 2021

Exposição
Flor do Tejo Bar, Vila Franca de Xira

fotos © Flor do Tejo Bar